O SOL E A LUA NA VIDA ESPIRITUAL

 

Swami Shraddhananda – “VENDO DEUS EM TUDO”

 

Nas escrituras Hindus vários objetos da natureza tem sido utilizados como símbolos para nos fazer compreender as realidades mais profundas da vida espiritual.

O vasto oceano é um símbolo de Deus por parecer infinito. As ondas estão constantemente se elevando e desaparecendo no oceano; assim também, na infinita realidade que é Deus, tudo neste universo aparece e desaparece. Do mesmo modo como o oceano é a fonte e o suporte para as ondas, Deus é o substrato de tudo. Tudo retorna para essa básica Realidade. O oceano é, portanto, um símbolo adequado para Deus.

Similarmente, o rio é o símbolo para a humanidade. Assim como o rio passa através muitas colinas, vales e florestas, e eventualmente flui para o oceano, nós temos nossa origem em Deus e estamos nos movendo em Sua direção. Nossas vidas seguem o seu caminho – por vezes com alegria, outras vezes com sofrimento – mas nosso destino final é Deus.

Outros símbolos são a árvore, o céu, o pássaro. Estes e outros elementos da natureza são empregados nas escrituras Hindus para nos auxiliar a entender Deus, a entender a nós mesmos e a entender o mundo. Um desses símbolos é a floresta: em uma floresta fechada, em que não existem trilhas, ficamos confusos. Como podemos encontrar o caminho? Quando não compreendemos o verdadeiro propósito de nossas vidas, estamos de fato perdidos em uma floresta sem trilhas. Por esse motivo a floresta simboliza a vida no estado de ignorância.

Da mesma maneira, o sol passou a simbolizar o conhecimento espiritual enquanto que a lua passou a simbolizar a devoção. O sol oferece tanto o calor que ocasionalmente provoca queimaduras como a luz que ilumina todas as coisas. Com o sol que se levanta as sombras da noite desaparecem, permitindo-nos ver e agir. Com o alvorecer da sabedoria espiritual – ou seja, o conhecimento de Deus, a percepção de nossa verdadeira natureza e a compreensão espiritual deste universo – nossa confusão desaparece. Sem este conhecimento vivemos na escuridão.

Enquanto somos ignorantes não compreendemos quem somos; não compreendemos nosso verdadeiro objetivo; não compreendemos de onde viemos; não compreendemos este permanente mundo em mudança e o constante fluxo da vida. E nem compreendemos Deus. Temos ouvido que Deus criou este universo e que Ele é a fonte de tudo o que existe – mas estas são apenas palavras. Não obstante, tanto as escrituras como aqueles que alcançaram o conhecimento de Deus nos relatam que é possível remover o estado de confusão da vida. Quando alcançamos a sabedoria divina, experimentamos uma transformação interior e nossa atitude em relação à vida muda; mudam os padrões de nossas emoções, pensamentos e  comportamento.

Os Upanishads dizem que podemos nos esquivar de tudo, mas que não podemos nos esquivar de Deus. Quando conhecemos a verdadeira natureza de Deus, veremos que Ele está em todo lugar em todos os momentos, em cada uma de nossas respirações e na nossa própria existência. Ele é a verdadeira Realidade, mais fundamental que tempo e espaço. Esta Realidade é Consciência; sem Consciência não pode haver espaço, pois quando pensamos em tempo e espaço, a base dessa compreensão deve ser Consciência. Deve haver uma percepção de espaço bem como uma percepção de tempo, e essa percepção, essa compreensão vem de Deus. Do mesmo modo como o sol ilumina todas as coisas, Deus como a Luz de todas as coisas ilumina tudo – as estrelas, os céus distantes, este mundo, e nossos corpos, mentes e sentidos.

Superficialmente parece que cada um de nós é uma pequena individualidade formada por um corpo, uma força vital, uma mente, e um ego, mas profetas iluminados nos dizem que a história toda não se resume a isso. De acordo com as escrituras da Vedanta, o Ser é a nossa realidade básica. O Ser não existe nem no espaço nem no tempo; ele compartilha a verdade de Deus.

Esta compreensão não é adquirida por mera leitura ou raciocínio, mas por meio de uma profunda investigação, disciplina e meditação. Tal conhecimento completa as nossas vidas. Quando surge a sabedoria espiritual, a vida se torna plena de significado. Cada um de nós começa a ver a face de Deus em tudo; compreendemos que existe a chama de Deus está dentro de nós. Em todos os seres humanos Deus habita no coração como a Luz Divina. Se sabemos disto, qual deveria ser nossa atitude em relação a nossos companheiros seres humanos? Podemos odiar os outros? Podemos matá-los? Podemos ser injustos e explorar os outros? Deus existe em cada um de nós como um poder central – o poder em nossas vidas, nossas mentes e nossos sentidos. Todo poder, toda luz, toda sabedoria e toda alegria provém de Deus. O mesmo Deus está em tudo - em todos os seres humanos, plantas e animais.

Além de oferecer a luz, o sol também emite calor. Da mesma maneira como o intenso calor do sol queima tudo, o conhecimento espiritual tem o poder de marcar com ferro rubro. O que ele queima? Ele queima e destroi nossos desejos nocivos, paixões e apegos errôneos – coisas que interferem em nosso progresso espiritual. Um verso do Mundaka Upanishad afirma, “Quando o conhecimento de Deus vem, ele queima nosso karma.” Cada um de nós carrega um feixe de karma e desejos passados de vida em vida.

O Karma consiste de nossas boas e más ações; cada ação deixa um efeito, e esse efeito eventualmente gera frutos. O bom karma nos proporciona felicidade e o mau karma nos traz sofrimento. Não podemos escapar do karma. O Karma explica alguns problemas da vida e ele também  poupa a Deus por nossas desgraças. De outra forma nos queixamos: “Como isso aconteceu comigo?” “Como pôde Deus tirar o meu filho de mim” “Orei para Deus; sou Seu devoto. Como pôde Deus fazer essas coisas para mim?”

Estamos confusos a respeito da misericórdia e justiça de Deus, mas a teoria do karma nos diz que nossa felicidade ou dor são nossas próprias criações. Se somos cuidadosos em nossas atitudes e ações, então a vida se tornará mais fácil para nós. A essência da teoria do karma é que construímos nosso próprio futuro. Karma é a corrente que nos ata a nossa vida diária e nos força de viajar de vida em vida. Mas nosso objetivo espiritual é fazer cessar essa transmigração ininterrupta e sem sentido. Nós devemos transcender o karma. Isto somente pode acontecer quando compreendemos nosso verdadeiro Ser, que é sempre puro e sempre livre. O Ser nunca é atado pelo karma; o sol do auto-conhecimento destrói todo karma.

Na Índia antiga as crianças eram iniciadas na sagrada cerimônia do raio de luz. Ao iniciado era solicitado que repetisse uma oração Védica cada manhã. Aquela antiga oração, dirigida ao Sol como símbolo de Deus, é conhecida como o mantra Gayatri. A substância desse mantra é:

 

                    Deus é a luz que ilumina todos os mundos.

                    Ele é a luz da Consciência.       

                    Ele ilumina todas as coisas.

                    Possa a Luz das luzes

                    Entrar em meu coração e iluminar o meu entendimento.

 

A oração Gayatri invoca a luz de Deus para que ilumine nossas vidas, a mente, os sentidos, o ego e mesmo o mundo exterior. A luz solar é a luz física mas a luz de Deus é a luz espiritual. Quando a luz espiritual alvorece, tudo é visto de uma forma diferente. Todas as coisas, incluindo nosso próprio ser, são vistos a partir de um ponto de vista espiritual. E o que esse discernimento conquista? Ela erradica nossa ignorância e nossos medos. Ele nos traz verdadeira força e paz.

Em contraste ao sol do conhecimento, a lua é o símbolo da devoção, amor de Deus. O calor da luz é essencial para a vida e a ação mas também necessitamos da lua. O que é que a luz do luar faz por nós? Ela nos traz uma atmosfera de paz, de pureza e beleza; essas coisas também são necessárias na vida. A devoção a Deus nos traz a luz do luar a nossas vidas – ou seja, suavidade e amor.

O amor de Deus é milhares de vezes mais suave e calmo que o amor mundano que opera sujeito a muitas limitações. O amor mundano é direcionado apenas para nossas famílias e amigos mas o amor de Deus resplandece muito além disso. Assim como a luz do luar se derrama sobre a África, Índia, América, e todos os países, quando o amor de Deus entra em nossos corações, nosso amor se estende a todos. O mundo todo se torna nosso próprio. Compreendemos que encontramos nosso mui Bem-Amado – a verdadeira fonte de todo amor e o eterno companheiro de nossas vidas. O universo todo então parece ser o seu parque de diversões.

Por um longo tempo em nossas vidas espirituais, o conhecimento espiritual e a devoção não são a mesma coisa. Mas os grandes sábios disseram que finalmente eles se tornam unos. Quando o amor alcança o seu ápice, não há diferença entre conhecimento e devoção. Mas até que esse tempo chegue, da mesma forma como o sol e a lua tem funções diferentes e nossas reações em relação a eles são diferentes, na vida espiritual o auto-conhecimento e o amor a Deus tem diferentes papéis a desempenhar. O conhecimento nos liberta da ignorância e nos torna capazes de encontrar a unidade espiritual em todas as coisas. Por outro lado, quando o buscador espiritual desenvolve amor por Deus, o mundo se torna um céu. O devoto não é mais perturbado pela agitação da vida e está em paz com o mundo.

Ninguém pode viver sem amor; cada um deve ter alguém ou alguma coisa para amar. Quando os devotos veneram a sua família, eles compreendem que este amor de fato vem de Deus. Quando eles amam as árvores, a luz do luar, o oceano, as neves, eles vêm tudo isso como expressão do infinito amor que é Deus.

Embora os devotos sintam aumentar gradualmente a presença de Deus em seus corações, o seu amor por Deus de forma alguma obstrui as afeições deste mundo. Sabendo que Deus é a totalidade todo amor, os devotos amam seus filhos mais intensamente que antes, compreendendo que estão amando a Deus por meio da criança. Similarmente quando os devotos amam as flores, eles sabem que é a beleza de Deus que se reflete nas flores; eles amam os cantos dos pássaros pois esses cantos são a imagem refletida da divina música de Deus. Portanto, o amor de Deus permeia, enriquece e purifica nossas vidas. 

A devoção a Deus supera o egoísmo e as limitações do amor terreno, transformando-o em amor divino. Quando isso ocorre, o mundo parece pleno de amor, alegria e paz. Tal experiência bem pode ser comparada ao luar. Da mesma forma que o luar cai sobre nós e nos faz sentir calmos, meigos e ternos, o amor de Deus confere tranquilidade e compaixão a todos em torno de nós. E além do mais quando o devoto de forma clara sente a presença de Deus, ele pensa espontaneamente, “Sou tão rico quanto possível, pois tenho a Deus. Meu amado Senhor é eterno e infinito. Também eu sou eterno. De vida em vida Ele estará comigo. Este amor divino é uma relação eterna.” Em todos os momentos devemos manter a presença de Deus em nosso coração por meio da prática regular da contemplação, oração e repetição do santo nome. E por não devermos nos impacientar, devemos ser determinados. Uma vez que o objetivo está estabelecido, devemos alcançar a realização espiritual.

Se seguimos o caminho do conhecimento, procuramos pensar a respeito de nós mesmos como Espírito – uno com o Infinito. Deus é a unidade final por trás de nossas pequenas individualidades. Quando seguimos esse caminho, lentamente vem a convicção de que todas as dualidades são uma coisa só – a dualidade do mundo, a dualidade deste corpo, e mesmo a dualidade de Deus. Finalmente essas dualidades se dissipam, deixando apenas o Um, o Indescritível. As escrituras da Vedanta dizem que a verdade mais elevada de Deus é, de fato inexpressável, além da mente e da linguagem. Para aqueles que desejam experimentar a suprema unidade do Espírito com o objetivo de elevar-se acima de suas pequenas individualidades, o caminho do auto-conhecimento, o caminho do conhecimento do Ser é o mais atraente.

Para outros a idéia de amar a Deus é mais atraente. Eles pensam “Eu não busco a unidade última. Desejo manter Deus separado de mim. Ele é meu bem-amado mestre, ou pai, ou mãe ou amigo e companheiro.” Na senda da devoção a mente não teme a dualidade. O devoto sabe que este é o mundo de Deus. O devoto faz a reflexão, “Porque este mundo não existiria? Meu corpo é o templo de Deus; porque este corpo não existiria?” A dualidade, no luar da devoção, se torna harmoniosa. O mundo se torna harmonioso, bem com as ações e comportamento do devoto. O caminho da devoção mantém a dualidade, uma vez que mantém a distinção entre Deus e o devoto. Observando a multiplicidade deste mundo, o adorador vê que é Deus quem representa este drama cósmico. Criação, preservação e dissolução, tudo é parte da atividade de Deus. Dessa maneira, o caminho da devoção permite à nossa mente olhar este mundo com um estado de ânimo de amor e paz.

Algumas pessoas praticam tanto a senda do conhecimento quanto o da devoção e podem fazer isso de forma harmoniosa. Algumas vezes a mente do buscador espiritual se eleva ao nível da Suprema Unidade em que o corpo, o ego, as árvores e montanhas não existem pois tudo é apenas o Espírito. Neste estado o meditador não pode falar. Esta é a inexpressável experiência de advaita ou não dualidade. Emergindo desta meditação, o aspirante não é mais perturbado por maya; o Absoluto se tornou o Deus de amor e o discípulo do caminho do conhecimento a partir desse ponto age como devoto de Deus, contemplando este mundo em toda a sua multiplicidade mas permanecendo imperturbável. Há agora luar em sua vida. Como consequência o devoto diz: “É tudo Deus, meu Bem-Amado. A mesma infinita Unidade se manifesta no universo de múltiplas formas.” Em um estado de devoção ele canta cantos devocionais a Deus. De fato, é plenamente possível para o mesmo devoto experimentar tanto o conhecimento do Ser, o Auto-conhecimento, quanto a devoção a Deus. Uma admirável combinação dos dois estados pode subsistir em harmonia. Finalmente virá o tempo em que o amor do devoto e o conhecimento se tornam uma coisa só.

Uma história sufi relata que em uma tarde chuvosa uma donzela estava sentada em sua calma moradia. O seu amado bateu na porta mas ela não foi aberta. Novamente se fez ouvir a batida na porta e a voz da moça se fez ouvir: “Quem está aí?” O visitante falou o seu nome mas a porta se manteve trancada. Então o jovem implorou, “Sou seu amigo, seu amado. Por favor abra a porta!” mesmo assim ele não obteve permissão para entrar. Por fim ele insistiu, “Abra a porta! Eu sou você mesma.” E a porta finalmente se abriu. O seu amado alcançou o nível de identificação em que pensou, “Não há diferença entre você e eu.” Da mesma forma o buscador espiritual passa a sentir que “Deus é meu Amado, Deus e eu somos um.” Por meio do conhecimento o devoto alcança a experiência da unidade; o mesmo sentimento de unidade com Deus pode vir através a devoção. Portanto amor e conhecimento se fundem em uma coisa só; é isso que se constata na vida de muitos santos. Em uma análise final, não há diferença entre o conhecimento e a devoção.

A vida espiritual verdadeiramente traz realização à vida humana.  Através da vida intelectual, vida dos negócios, vida física, podemos satisfazer várias potencialidades, mas a vida espiritual é a realização mais expressiva. Devemos fazer uso de quaisquer que sejam os dons que Deus nos concedeu. Mas também devemos lembrar que um dom espiritual é a dádiva mais preciosa de Deus. Para conhecer Deus, amar Deus, elevar-se acima da ignorância, sentir unidade com todos os seres e dominar a morte são desejos espirituais, profundamente arraigados na mente humana. Deus nos concedeu todas essas coisas de forma sutil; cabe a nós desenvolver tais potencialidades.

 

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